quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Orçamento Impositivo: Liberação de verba para congressistas será obrigatória

Câmara derrota Planalto e aprova proposta que torna automática destinação de recursos a redutos políticos

Além de bancar projeto, Cunha entrega comissão da reforma política ao DEM e anuncia que irá chamar os 39 ministros
RANIER BRAGONMÁRCIO FALCÃODE BRASÍLIA
Em uma nova derrota do governo, a Câmara aprovou nesta terça (10) a execução obrigatória das verbas do Orçamento destinadas por congressistas aos seus redutos eleitorais --as chamadas emendas parlamentares.
O projeto foi bancado pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) vai a promulgação pelo comando do Congresso. Não há possibilidade de veto presidencial.
As emendas parlamentares são um dos pontos mais sensíveis na relação entre o Congresso e o Executivo. A liberação das verbas é historicamente usada como moeda de troca, pelos dois lados, especialmente em meio a votações de projetos estratégicos.
Pela proposta, 1,2% da receita corrente líquida deverá ser gasta obrigatoriamente com essas emendas. Também fica estabelecido que metade deverá ser aplicada na saúde --os valores serão considerados no cálculo do mínimo que a União deve aplicar no setor.
Em 2015, cada um dos 594 parlamentares terá cota de R$ 16,3 milhões para as emendas --R$ 9,7 bilhões no total.
Para garantir apoio à proposta, Cunha anunciou uma mudança no Orçamento deste ano para garantir que os 224 novos deputados possam indicar emendas, a um custo de R$ 2 bilhões para a União.
Eleito para a presidência da Câmara contra a vontade da presidente Dilma Rousseff, Cunha quis prestigiar seu antecessor, o ex-deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que fez da PEC uma de suas bandeiras --ele assistiu à votação e foi chamado à mesa para acompanhar o anúncio da aprovação.
CONSTRANGIMENTOS
Antes de o projeto ser aprovado, Cunha já havia anunciado outras medidas que constrangem o Planalto.
A primeira foi a entrega do comando da comissão que irá discutir a reforma política ao deputado Rodrigo Maia (RJ), ex-líder do oposicionista DEM. A reforma foi eleita por Cunha como sua principal meta em 2015. O relator será Marcelo Castro (PI), peemedebista próximo a ele. Coube ao PT a 1ª vice-presidência, função menos importante.
Outra decisão de Cunha foi a recusa de atender a um lobby comandado pelo Planalto para que fosse adiada por pelo menos 30 dias a votação da chamada "PEC da Bengala" --emenda à Constituição que eleva de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória na cúpula do Judiciário.
O PT acusa a oposição de tentar aprovar a medida para evitar que Dilma indique cinco integrantes do Supremo Tribunal Federal até 2018.
A terceira medida anunciada foi a ideia de que cada um dos 39 ministros de Dilma compareça à Câmara, às quintas, para debater com os deputados. Eles seriam convidados, mas o convite pode se transformar em convocação. Folha, 11.02.2015

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O diabinho que habita a alma

Eliminar o racismo exige uma revolução cultural superior à eleição de um presidente negro

O que sempre me fascinou nos EUA é a mobilidade social que oferece (ou oferecia, porque a crise derrubou-a) e, por extensão, a diversidade étnica de sua população.
Surpreendeu-me, por exemplo, travar conhecimento com um afegão, o primeiro que encontrei na vida, exatamente nos Estados Unidos.
Era o taxista que me levou do aeroporto ao hotel em Denver.
Estamos falando de 1997, antes, portanto, da invasão norte-americana ao Afeganistão. O taxista, que fugia do Taleban, falou muito bem da acolhida que tivera.
Não deve ser o único imigrante feliz, a julgar pela quantidade fenomenal de estrangeiros que procuram fazer a América.
Já esqueci o número exato, mas são mais de cem os idiomas falados no serviço telefônico de emergência de Los Angeles --evidência óbvia do número e diversidade de estrangeiros que procuram a cidade.
Por tudo isso, fica ainda mais chocante a permanência do racismo, como demonstrado pelos incidentes dos últimos dias.
Depois que os norte-americanos elegeram e reelegeram um negro à Presidência, era de supor que a desconfiança recíproca entre negros e brancos fosse coisa do passado.
Engano, como escreve Michael Wines no "New York Times": "Uma nação com um presidente afro-americano e uma classe média negra significativa, ainda que em dificuldades, permanece profundamente dividida a respeito do sistema judicial, tal como estava décadas atrás".
Os números mostram os motivos da divisão: os negros são 13% da população total, mas formam 40% da população carcerária; 3% de todos os homens negros estavam presos no fim de 2013, quando a taxa entre brancos era de apenas 0,5%.
Em 2011, 1 de cada 15 afro-americanos tinha o pai preso; entre brancos, a proporção era de 1 para 111.
É inevitável que parcela importante de brancos veja um negro e pense logo num bandido, assim como um negro olha para um policial branco e vê um racista arbitrário.
Não é uma afirmação empírica: Wines cita pesquisa Huffington Post-YouGov desta semana em que 62% dos afro-americanos dizem que o policial (branco) Darren Wilson errou ao atirar no negro Michael Brown, opinião que apenas 22% dos brancos compartilhavam.
Note-se que até um líder negro destacado, como o reverendo Jesse Jackson, esconde, no fundo d'alma, um demônio racista, conforme recordou nesta quarta-feira (26) Marc Bassets em "El País".
Frase de Jackson: "Nada me dói tanto a esta altura da vida como ouvir passos atrás de mim, começar a pensar que me vão roubar e, então, olhar para trás e respirar aliviado ao ver que é alguém branco".
Foi esse sentimento desumano que plasmou toda uma legislação segregacionista durante séculos.
O fato de ela ter sido derrubada aos poucos não bastou para matar todos os demônios racistas que habitam os seres humanos.
Será preciso toda uma revolução cultural e mental, por meio de uma ativa educação à convivência, para que um negro possa sentir-se tão à vontade nos EUA como um afegão. Atenção, isso vale também para o Brasil. Clóvis Rossi. Folha, 27.11.2014.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Negro deve se organizar para ser reconhecido como igual

Para viúva de Nelson Mandela, combate ao racismo depende de mobilização, e é cedo para se falar em 'primavera africana'

FERNANDA MENADE SÃO PAULO
Quando se mudou do interior de Moçambique para a capital, Maputo, para ingressar no ensino médio, Graça Simbine estranhou o fato de ser a única negra em uma classe de 40 alunos.
Começava ali a trajetória de ativista da jovem que se formou em filosofia alemã pela Universidade de Lisboa e, de volta à terra natal, entrou para a história contemporânea da África como guerrilheira da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), ministra da Educação daquele país e viúva de dois presidentes do continente.
Ela foi casada com Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique independente, e Nelson Mandela, ícone da luta contra o apartheid na África do Sul. "Tive o privilégio de dividir a minha vida com dois homens excepcionais", declarou certa vez.
Após a morte de seu primeiro marido num acidente de avião, em 1986, Machel manteve luto por cinco anos. Após a morte de Mandela, em dezembro do ano passado, a ativista decidiu romper o luto em poucos meses para se dedicar à luta contra o racismo, o analfabetismo e a pobreza, e pelos direitos das mulheres e das crianças.
Neste final de semana, Machel, 69, vem ao Brasil para ser homenageada na Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra, que acontece no Memorial da América Latina, em São Paulo (leia mais na página E3).
O evento sucede o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta (20). Apesar de reconhecer a importância simbólica da data, ela avalia que há pouco o que comemorar: "A família humana, ainda em 2014, tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra."
Leia a entrevista concedida à Folha por telefone.
Folha - Há diferença entre consciência negra no Brasil e na África?
Graça Machel - Sim e não. Sim porque a maior parte dos brasileiros veio da África. Mas os negros no Brasil misturaram-se com uma enorme diversidade de grupos, criando uma identidade diferente daquela dos africanos. Aqui na África, falamos em diáspora negra [imigração forçada pelos séculos de escravidão] e avaliamos que os negros no Brasil são diferentes dos negros da Colômbia, que são diferentes dos negros dos EUA, apesar de todos terem a mesma origem. Nós evoluímos e nos diferenciamos de acordo com os contextos.
Os negros, em geral, seguem em situação socioeconômica desprivilegiada em relação aos brancos. É esta a face atual do racismo?
Os negros no Brasil, nos EUA, na Colômbia e em toda a África ainda sofrem dos mesmos efeitos de serem desfavorecidos e discriminados com base na raça. A família humana, ainda em 2014, precisa reconhecer que tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra. Há razões históricas para isso, mas a história evolui e se transforma. E a pessoa de raça negra é que tem de se organizar para reclamar sua identidade e dignidade. Não há ninguém que te vai reconhecer se não valorizares a ti próprio. Cabe a nós reclamarmos o espaço e os direitos que nos são inalienáveis.
A África nunca teve tantos governos democráticos e vê hoje surgir uma pequena pequena classe média. Quais são os principais desafios do continente hoje?
Se fôssemos falar de todos os desafios, conversaríamos por uma semana inteira (risos). O principal deles é a aceitação da diferença como fator de reforço das sociedades e não de seu enfraquecimento: diferença étnica, racial, de gênero e religiosa. No nível político, precisa haver tolerância entre partidos políticos que processam de formas diferentes a construção de uma nação, cuja robustez vai se basear na busca de elementos positivos que conduzam a uma coesão social.
Um segundo desafio é a aceitação da alternância política. Em muitos casos, nós passamos de partidos únicos a democracias multipartidárias. Mas, mesmo nesse modelo, há certa resistência por parte daqueles que detêm o poder e, por isso, vemos países com os mesmos chefes de Estado há 20 ou 30 anos.
O terceiro desafio é o do crescimento econômico, que ocorre sem equidade, o que nos caracteriza como um continente com desigualdade e estratificação social gritantes.
No final de outubro, Burkina Fasso depôs seu presidente, o ditador Blaise Compaoré, que estava há 27 anos no cargo. Fala-se no surgimento de uma "primavera africana", em referência à derrubada de regimes ditatoriais ocorrida em países árabes durante 2011. Podemos assistir à queda de ditadores como Robert Mugabe (Zimbábue) em breve?
Não estou certa de que estamos diante de uma primavera africana. A derrubada do ditador de Burkina Faso é um aviso àqueles que dirigem países há décadas: o que ocorreu ali pode acontecer em outros sítios. Mas as condições são bem diversas entre países e é preciso ter cautela.
A sra. tem militado contra os chamados casamentos prematuros: arranjos em que meninas, às vezes ainda durante a infância, são submetidas a matrimônios forçados.
A questão dos casamentos prematuros forçados é um fenômeno global. Acontece na África, mas também na Ásia e na América Latina.
Quando a família está sob pressão para resolver problemas econômicos, facilmente acredita que pode entregar uma filha a um casamento para aliviar os problemas de pobreza. Mas não é a pobreza que é o problema. O problema é a crença de que há um valor diferente que se atribui a uma mulher e a um homem.
Outro exemplo: não há um único país do mundo que tenha eliminado diferenças salariais entre homens e mulheres que ocupam os mesmos cargos. Para igual trabalho, pensa-se que a mulher pode ganhar menos do que o homem. É a mesma raiz do problema. Assim como no fato de muitos homens se acharem no direito não apenas de bater como de até mesmo matar suas companheiras por causa de um conflito.
Devemos olhar para casamentos prematuros, desigualdade salarial, dificuldade de ascensão e violência contra a mulher pela mesma raiz: não se valoriza a mulher como se valoriza o homem. A questão de gênero é dos maiores problemas que a família humana enfrenta, ao lado da questão da raça. Ambos têm as mesmas características e afetam toda a sociedade. Folha, 20.11.2014.